Enquadramento do Buraco Roto - Parte 1 de 4

 

1.5.1 – Formação detrítica do MCE e terra rossa

A abundância de depósitos de areias e a grande facilidade na sua remobilização, eventualmente para galerias inferiores, na gruta do Buraco Roto, levaram-nos a dar uma maior atenção à sua origem e proveniência.

 

A uniformidade granulométrica destes pequenos gãos de quartzo (areias) que se encontram, em quantidade, mesmo nas zonas mais interiores da gruta sugere um aporte quer por gravidade quer como carga de fundo arrastada ao longo das condutas subterrâneas geralmente pouco inclinadas.

Duas das possíveis formas do aporte subterrâneo de sedimentos detríticos em função de fluxos ou escorrências hídricas nesta região poderão ter sido:

 

A – Aporte em grande escala através de sumidouros. Para se verificar a ocorrência desta condição seria necessário um nível base muito alto para possibilitar drenagens superficiais ao longo do Vale da Quebrada (Vale da Formosa e Vale da Seta).

 

B – Aporte em pequena escala mas muito dilatado temporalmente até ao arrastamento seletivo (granotriagem) em profundidade através de fendas, fraturas e/ou diáclases de uma boa parte do depósito superficial em função das aberturas disponíveis e da evolução das pequenas condutas subterrâneas. São normais as fases sucessivas de acumulação e remobilização em função dos fluxos com passagens pontuais a outras condutas em níveis inferiores.

Fig. Nº 5 – Duas das formas possíveis de aporte de areias e pequenos clastos: A – Sumidouro, B – Deslocação em profundidade
por gravidade com arrastamento pelas águas infiltradas. Adaptado de: FERNANDEZ, E. (1995)

 

Há referências recolhidas, na zona, sobre a existência de antigos pequenos sumidouros (vertentes Norte do Vale da Quebrada). Em alguns caminhos declivosos observam-se locais de infiltração rápida, no solo cascalhento, quando ocorrem precipitações intensas.

 

A existência de depósitos siliciclásticos cobrindo um carso primitivo parece ser uma explicação plausível em como a origem destas areias poderá resultar, logo desde uma fase inicial, de um aporte em profundidade de parte de um eventual depósito de cobertura superficial.

 

A proveniência desse depósito de cobertura com seixos, grãos de areias e terra rossa é, no entanto, de explicação e datações complexas. Existem várias referências bibliográficas onde a sua origem poderá ser enquadrada:

 

a)      Aluviões transportadas por correntes vindas do Maciço Antigo (MARTINS F. 1949 – Pág. 118) - «Mais sobressairá o agente de aplanação deste nível das Pias ao fazer-se a necessária referência aos depósitos superficiais siliciosos que outra coisa não podem ser, dada a natureza do material e seu grau de rolamento, senão aluviões transportados e aqui depositados por águas vindas do Maciço Antigo. Ora, na Cabeça da Barreira (505m), numa ligeira depressão afeiçoada no calcário, está um resto deste depósito grosseiro à altitude de 499 metros; alguns km a NE um outro resto está a cerca de 480m, na Giesteira, e calhaus esparsos encontram-se ainda em alguns outros cabeços; e como em todos esses locais o biselamento das camadas é patente, e porque no nível mais talhado repousa uma formação aluvial continental, não vejo possibilidade de refutar-lhe a origem fluvial».

b)      Depósito do tipo siderolítico (MARTINS F. 1949 – Pág. 120/121) - «Como ponto de partida consideremos agora um outro depósito de natureza siliciosa, cujos restos esparsos não constituem afloramentos contínuos, antes aparecem um pouco por toda a parte, metidos nos fundos da rocha e em pequenas depressões, ou misturados na terra rossa das dolinas e vales carsificados: trata-se de uma formação semi-aluvial, semi-eluvial que inclui areias quartsozas amarelo-doiradas, calhauzinhos bem rolados de quartzo, pisólitos de limonite, argilas vermelhas, embalando grãos de areia, e arenitos ferruginosos.»

MARTINS (1949) considera estes depósitos do terciário (Paleogénico) embora admita que podem ser mais antigos.

c)      Relação entre os depósitos descritos em a) e b) (MARTINS F. 1949 – Pág. 122) – «o depósito, cujos restos se encontram na Cabeça da Barreira, na Giesteira e outros locais do Planalto de S. Mamede, parece posterior à formação siderolítica – e como esta datará dos fins do Eoceno ou da primeira parte do Oligoceno, evidentemente as aluviões são, em todo o caso oligocénicas.»

d)      Rebordo interior de uma superfície de abrasão marinha (DAVEAU S. 1973 – Pág. 25) «A vertente ocidental da Serra dos Candeeiros constitui o rebordo interior de uma superfície de abrasão marinha, considerada como pliocénica.» Refere ainda que «calhaus perfeitamente rolados se encontram a diversas altitudes, situando-se o retalho mais alto, o da Pia da Serra, a 350m de altitude». Embora esta referência se reporte a uma localização distanciada de alguns km para Sul e numa parte do MCE com evolução tectónica diferenciada pode constituir um indicador aproximado da importância da altitude a que chegou a influência marinha no rebordo ocidental do MCE.

e)      Natureza e significado dos depósitos (FERREIRA et al.,1988 – Pág. 12 e 13) - «Há todas as transições entre uma terra rossa quase pura, com fraca contribuição detrítica, até depósitos grosseiros avermelhados, constituídos fundamentalmente a partir dos arenitos e conglomerados do Cretácico. A ideia de uma cobertura siderolítica, resultante da destruição de velhos perfis lateríticos ou fersialíticos elaborados no maciço antigo e denunciando uma importante fase rexistásica, é muito interessante e até provável; já pode ser mais discutível o significado da cascalheira siliciosa «oligocénica», que parece claramente residual. Em todo o caso, vestígios dela existem nalguns pontos altos, o que mostra, pelo menos, uma exumação incompleta dos calcários»

f)       Plataforma marinha (FERREIRA et al., 1988 – Pag. 14) - «A morfologia regional não parece favorecer a ideia da existência de uma plataforma litoral mais alta do que a de S. Jorge; mas não se pode deixar de considerar a possibilidade de um soerguimento do Maciço, em relação às áreas circundantes, durante o Quaternário. Este levantamento recente encontraria uma prova decisiva, até hoje não confirmada, se se observassem retalhos de depósitos marinhos ou fluvio-marinhos no interior do Maciço. Encontram-se aqui areia e seixinhos de quartzo com elevado índice de arredondamento, mas eles fazem parte do depósito siderolítico, na terminologia de A. FERNANDES MARTINS, e devem certamente o elevado grau de desgaste à circulação em condutas subterrâneas». Como termo de comparação refira-se que o planalto pliocénico de S. Jorge não chega a atingir os 200 metros.

g)      Síntese das sucessivas fases deposicionais na zona central de Portugal (a linha de costa reporta-se aproximadamente à zona entre Aveiro e Nazaré) – Mais focada nas bacias do Mondego e Alto Tejo é uma síntese importante, territorialmente mais ampla e abrangendo um tempo geológico suficientemente dilatado para permitir enquadrar no contexto geral, embora marginalmente, a área do nosso trabalho.

Evolução paleogeográfica da área emersa de Portugal Central, desde finais do Cretácico até finais do Placenciano esquematizada e descrita na figura a seguir (CUNHA 1996).

 

Fig. Nº 6 – Evolução paleogeográfica da área emersa de Portugal Central, desde finais do Cretácico até finais do Placenciano.
LEGENDA: 1 – marinho; 2 – ambiente de transição; 3 – planície aluvial, 4 – área de não sedimentação,
5 – principal eixo de drenagem, 6 – rio entrançado, 7 – leque aluvial, 8 – falha ativa, 6 – diapiro.

A) Campaniano final a Maastrichtiano: leques aluviais peridiapíricos e sistemas fluviais arenosos e meandriformes drenando, para NW, uma planície costeira.

B) Paleocénico a início do Ipresiano: o bordo da bacia localizava-se, provavelmente, mais para ocidente, com a planície costeira ainda drenada por rios meandriformes.

C) Eocénico médio a final: rejogo de falhas NNE-SSW e NE-SW, intensa erosão do soco hercínico e grande extensão das áreas sedimentares; leques aluviais endorreicos na Bacia do Baixo Tejo e sistemas fluviais entrançados na Bacia do Mondego, a drenar para o Atlântico.

D) Miocénico: em ambas as bacias sedimentares, sistemas fluviais arenosos drenavam para estuário.

E) Miocénico final a Zancleano: intensa compressão expressa por falhas inversas NE-SW e desligamentos NNE-SSW, gerando-se leques aluviais no sopé de relevos em soerguimento.

F) Início do Placenciano: transgressão marinha muito penetrativa, apesar do abundante fornecimento siliciclástico expresso por extensos leques aluviais e rios entrançados areno-cascalhentos. A dissecação da Bacia terciária de Madrid (do Alto Tejo, Espanha) foi iniciada pela sua captura por sistemas fluviais da Bacia do Baixo Tejo.

h)      A zona do atual litoral entre aproximadamente Aveiro e Setúbal na situação de inundação marinha – Reconstituição paleogeográfica e paleosedimentológica da área atualmente emersa de Portugal Central, na situação de máxima inundação marinha na transição Zancleano-Placenciano (CUNHA e MARTINS 2004).

 

Fig nº 7 – Legenda : 1 – área sem sedimentação;  2 – conglomerados aluviais, 3 – arenitos aluviais; 4 – sedimentos marinhos de transição;

5 – leque aluvial; 6 – principal eixo de drenagem fluvial; 7 – vale; 8 – fronteira espanhola;

M.C.E. – Maciço Calcário Estremenho; C.P.P. – Cordilheira Central Portuguesa.

 

Em jeito de conclusão apresentamos uma síntese recolhida em CUNHA et al, (2009) sobre as várias etapas da evolução geológica durante o Cenozóico em Portugal continental.

 

Até meados do Tortoniano a evolução esteve marcada por progressiva e lenta erosão do Maciço Hespérico, sob condições climáticas que favoreceram o aplanamento do soco e acarreio de areias felspáticas (clima semi-árido a subtropical com longas estações secas). Em finais do Miocénico e no Zancliano, sob clima temperado quente e muito contrastado, a sedimentação foi endorreica e expressa por leques aluviais no sopé das escarpas de falha ativas, principalmente falhas inversas NE-SW e desligamentos NNE-SSW. No Pliocénico superior, o clima temperado quente tornou-se muito húmido e desenvolveu-se uma rede hidrográfica exorreica, precursora da atual. No Plistocénico, a continuação do soerguimento tectónico regional e os períodos com baixo nível do mar foram determinantes no progressivo encaixe da rede hidrográfica e no desenvolvimento de capturas fluviais.

 

Em complemento dos efeitos descritos na pequena abordagem paleogeográfica apresentada e dos ocorridos no Quaternário (abordagem paleoclimática a ser publicada futuramente) regista-se ainda uma forte intervenção antrópica. A região deste nosso trabalho tem sofrido, e continua a sofrer, desde há várias décadas, uma intervenção humana extensível a quase todo o seu modelado superficial nomeadamente: agricultura nos espaços mais aplanados e de declive suave, alterações provocadas no terreno pelos importantes espaços utilizados no plantio de eucalipto, implantação de parques eólicos e respetivos acessos na maioria dos topos do relevo e ainda as explorações industriais de pedra.

 

A origem da areia destes depósitos no Buraco Roto é certamente a superfície mas o trajeto que os seus grãos percorreram mesmo só neste pequeno pedaço do território é ainda, e poderá continuar a ser, uma incógnita.

1.6 – Paleocarso primitivo

 

Alguns pormenores observados nas zonas mais interiores da exsurgência do Buraco Roto parecem indiciar uma evolução cársica bastante antiga. A existência, na zona, de um endocarso primitivo a alguma profundidade, mesmo que algo incipiente, seria explicada pela forte e diversificada ação tectónica local que, para além de provocar uma importante fracturação do calcário batoniano, possibilitou alguns períodos de emersão superficial ao longo da sua história evolutiva.

 

No Planalto de S. Mamede observa-se uma longa lacuna estratigráfica correspondente quer à interrupção da sedimentação, quer a fases de erosão neste local da Bacia Lusitânica entre o topo do Batoniano (aproximadamente 165 Ma) e o topo do Cretácico Inferior (Aptiano-Albiano a Cenomaniano; aproximadamente 100 Ma). A região terá estado predominantemente à superfície durante este tão longo intervalo de tempo geológico? Qual seria o aspeto do relevo nessa altura? Qual o papel dos paleoclimas durante tão longo período?

 

Para THOMAS (1985) o papel mais importante na evolução do endocarso no MCE é a deposição do final do Aptiano, “ Le CRETACE presente donc de larges affleurements dans l’ emsemble de la region et repose en discordance sur les calcaires du Jurassique qu’ il recouvre partiellement. Cette disposition est extremement importante pour l’ analise de la compréhension des ecoulements souterrains, du fait de l’ ecran hydrogeologique ainsi constitué.”

 

O enquadramento paleogeográfico desta parte do MCE recolhido bibliograficamente reporta-se, de um modo geral, a uma região mais ampla mas mesmo nestas circunstâncias proporciona alguns indicadores importantes.

 

A evolução da Bacia Lusitânica ocorreu desde o Triásico superior até ao Cretácico inferior (topo do Aptiano inferior) altura em que colmatou definitivamente. Durante este longo tempo geológico ocorreram várias descontinuidades sedimentares resultantes das alterações tectónicas regionais e do eustatismo global.

 

De acordo com KULLBERG (2000), pág. I 40 – “ A curva eustática global é, segundo B. HAQ et al (1988), desde o Jurássico inferior até ao Cenomaniano tendencialmente ascendente (subida do nível do mar). As principais inflexões encontram-se nos intervalos: Domeriano-Toarciano inferior, Toarciano médio-Aaleniano inferior, Bajociano superior- Batoniano superior (mostrando maior inflexão do que os anteriores), Titoniano- Valanginiano e Baremiano inferior- Albiano inferior (com pequena inflexão).”

 

Na descrição dos calcários micríticos de Serra de Aire MANUPELLA et al (2000) referem: “ Na região do Planalto de Fátima-S. Mamede, observam-se em diversos locais sequências cíclicas de calcários micríticos fenestrados, com gastrópodes (incluindo nerineídeos) e lamelibrânquios (incluindo megalodontídeos), separadas entre si por paleosolos (níveis centimétricos a decimétricos de calcretos laminares) e por paleocarsos (espessuras médias de 5 a 20 cm).”.

 

Uma lacuna estratigráfica muito importante separa sempre, em todo o MCE as formações do Oxfordiano das do Caloviano. Esta lacuna corresponderá a um período de exposição subaérea, durante o qual houve erosão dos níveis superiores precedentes COELHO (2002).

 

Durante o Jurássico Superior as condições climáticas permitiram o desenvolvimento de uma exuberante cobertura vegetal (posteriormente convertida em carvão) e de uma importante fauna terrestre da qual se evidenciam os dinossauros.

 

Independentemente da dimensão e intensidade destas referências recolhidas (especialmente a deposição cretácica) houve certamente algum tipo de evolução do Paleocarso. É pois no interior das grutas da região que eventualmente se poderão encontrar alguns indicadores dessa evolução.

 

 

AGRADECIMENTO

Agradecemos o prestimoso contributo da Profª. Drª. Ana Cristina Azerêdo do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa sobre os aspetos paleoambientais primitivos nesta parte do MCE e ainda pelo esclarecimento de algumas dúvidas.

Raul Pedro

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

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(FERREIRA, A. B., RODRIGUES, M. L., ZÊZERE, J. L. (1988) – Problemas da Evolução Geomorfológica do Maciço Calcário Estremenho. Finisterra – Revista Portuguesa de Geografia, XXIII, 45, pp. 5-28.

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MANUPPELLA, G.; ANTUNES, M. T.; ALMEIDA, C.; AZEREDO, A.; BARBOSA, B.; CARDOSO, J.L.; CRISPIM, J.; DUARTE, L.V.; HENRIQUE, M. H.; MARTINS, L.; RAMALHO, M.; SANTOS, V. & TERRINHA, P. (2000) – “Carta Geológica de Portugal na escala de 1/50000”. Not. Explicat. Da folha 27-A, V. N. de Ourém. Inst. Geol. E Mineiro, p.109.

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THOMAS, C. (1985) – “Grottes et algares du Portugal”. Comunicar Ldª., Lisboa.

 

Bibliografia online  

Sistema Nacional de Recursos Hídricos (SNRH).

Câmara Municipal da Batalha

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