Enquadramento do Buraco Roto - Parte 4 de 4

 

“"Já estou de saída mas, ninguém imagina por onde andei!!!”"

 

4 – Aspetos hidrológicos

 

4.1 - Bacias e redes de drenagem

 

Na parte norte e noroeste do MCE a configuração dos sistemas cársicos foi fortemente influenciada pela disposição estrutural, pelas características e orientação das descontinuidades e sua disposição macroestrutural. No entanto têm sido as condições ambientais o principal fator ativo na sua estruturação ao longo dos tempos geológicos mais recentes.

Na região são as bacias dos rios Lena e Lis que constituem as principais redes de drenagem. Desenvolvem-se a ocidente do bordo exterior do MCE mas ambos apresentam várias nascentes, nesse rebordo (exsurgências cársicas) ou próximo dele. No rio Lis pelo menos uma de entre elas é perene.

Figura Nº 4.1 -– Bacias hidrográficas e rede hidrográfica do Concelho da Batalha. ASCENSO (2011)

 

A sul-bacia da Ribeira do Rio Seco localiza-se a Este da bacia do Rio Lena. É paralela a esta e drena para o Rio Lis muito perto da sua exsurgência perene. Como o próprio nome indica uma grande parte do rio (Vale da Quebrada) está permanentemente seca devido à grande permeabilidade das rochas aflorantes sendo a circulação hídrica subterrânea. Na zona da povoação de Rio Seco uma elevada permeabilidade também o seca temporariamente. É vulgar considerar-se a nascente da Ribeira do Rio Seco em Reguengo do Fetal junto à base da escarpa de falha com o mesmo nome. Este topónimo da ribeira não corresponde à designação que consta na Carta Militar Nº 308 resultando possivelmente de uma alteração local para evitar confundir-se com uma outra ribeira afluente do Rio Lena (ribeira da Várzea).

 

Uma grande parte da bacia superficial da Ribeira do Rio Seco localiza-se a oriente da falha de Reguengo do Fetal a qual parece funcionar de forma semelhante a uma barragem alongada. Desta forma só quando, no interior do Planalto a água atinge uma cota mais elevada (acima da barreira considerada impermeável), nesta parte oriental, se observam drenagens substanciais, por exsurgências, junto à povoação de Reguengo do Fetal.

 

Já em 1962 o Eng. Vasco Mendes Sousa referia, em conferência sobre a aplicação da espeleologia no estudo de águas subterrâneas: “Do ponto de vista geo-hidrológico uma das principais consequências da carsificação dos calcários reside na progressiva concentração da sua circulação num muito redizído número de coletores mais ou menos profundos. Esta circulação vai substituindo a circulação primitiva através da rede densa e anastomosada dos calcários diaclasados e fraturados ainda não carsificados. Deste modo, enquanto os coletores vão crescendo a restante rede vai-se atrofiando”.

 

Acresce que no Buraco Roto se verifica, pelo menos ao longo das condutas já exploradas, uma grande mobilização de sedimentos detríticos possivelmente muito variável em localização e volume em função da ocorrência de situações de fluxo extremas. Este acarreio anual, por vezes substancial, parece não ter a expressão correspondente no exterior da cavidade. Desconhece-se qual a sua dispersão e possível acumulação em espaços inferiores no interior da cavidade.

 

Refere ainda o mesmo autor: “Com efeito, no estudo da utilização hidráulica dos maciços calcários há que resolver diversos problemas tais como o da capacidade de armazenamento da zona semi-húmida e da zona húmida a partir dos valores dos caudais exsurgentes ou extraídos e dos volumes de água infiltrados.

 

Uma avaliação preliminar expedita parece indicar, para a região, alguma diferença entre os valores atrás mencionados (o valor total das captações por furos ou outros processos relacionado com este tipo de mananciais é difícil de estabelecer).

 

Eventualmente a grande maioria das drenagens subterrâneas da zona oriental da bacia de alimentação definida superficialmente para a Ribeira do Rio Seco farão normalmente parte da bacia subterrânea do Rio Lis (exsurgência perene à cota de 80 metros). Os fluxos reportados em situações de precipitações extremas para o fundo do Vale do Malhadouro (190m) indiciam uma eventual drenagem subterrânea, a alguma profundidade, muito possivelmente por entre blocos e sedimentos depositados ao longo do seu curto talvegue os quais também se estenderão, eventualmente, ligeiramente para Este.

 

Alguns autores referem ainda a hipótese de drenagens ocultas, numa área mais ampla do Planalto de S. Mamede, em profundidade para a bacia do Tejo (através do Polje de Minde ou mesmo a maior profundidade) MANUPPELLA et al .(2000).

 

No interior do Planalto de S. Mamede poderão existir condutas subterrâneas interligadas com uma ou mais das condutas principais (drenagens para as exsurgências que alimentam o rio Lis) e possivelmente escalonadas a cotas ligeiramente mais elevadas que se interligarão à bacia principal por infiltrações substanciais com alguma duração (meses) ou por ocasião de precipitações extremas. Nestas condições é criada a possibilidade de importantes transvases marginais para pequenas condutas alternativas que mantêm possibilidades de drenagem independentes. A circulação nessas pequenas bacias secundárias (em tempos geológicos mais recentes) ao longo dos períodos anuais mais secos é fundamentalmente vadosa mas durante grande parte do ano ocorrem níveis suspensos preenchendo as condutas a níveis mais baixos (sifões). A ligeira inclinação para Este das bancadas dos calcários e a predominância de uma orientação NNE-SSW das descontinuidades quase verticais, nesta zona do bordo do planalto, favorecem essa possibilidade de acumulação (CARVALHO 2013).

 

É neste contexto que se enquadra a exsurgência do Buraco Roto localizada um pouco acima (190m) da base da escarpa. Na base da escarpa e a pequena distância a exsurgência da Loureira tem muito menor relevância.

Figura Nº 4.2 -– Permeabilidade relativa nas bacias do Lena e da Ribeira do Rio Seco. Estrela

vermelha - Fontes (nascente do Rio Lis); azul – Exsurgência do Buraco Roto. Fonte SNIRH. (ASCENSO 2011)

Para além do Buraco Roto a única observação espeleológica conhecida do nível das águas subterrâneas no Planalto de S. Mamede refere-se ao Algar da Água (-100m). THOMAS, (1985) refere que a cavidade se desenvolve 50 a 100 metros acima do nível base. A parte final conhecida é estreita e bastante colmatada com areias. A boca do algar abre-se a 360 metros de altitude.

4.2 – Condicionantes da evolução da rede de condutas

 

Nas imediações de Reguengo do Fetal destacam-se, de imediato, na paisagem os entalhes provocados na escarpa de falha por dois importantes vales abandonados: Vale da Quebrada e Vale dos Ventos. Estão ambos associados a extensas zonas ligeiramente deprimidas nesta parte Oeste do Planalto de S. Mamede respetivamente: Vale da Formosa, Vale da Seta e Covão da Carvalha para o Vale da Quebrada (vale fluviocársico) e a recortada depressão instalada no prolongamento da cabeceira do Vale dos Ventos entre as Serras da Andorinha (442m), Murada (498m) e Picareiros (497m) resultante do rebaixamento por dissolução efetuado ao longo de uma longa evolução criptocársica sob a cobertura detrítica do Cretácico (SPE, 2006).

 

De notar que na zona do terreno separada a norte pelo Vale da Pedreira e a sul pelo Vale da Quebrada se observa uma extensa área muito favorável à infiltração pluvial correspondente às suaves encostas e topo dos cabeços entre as cotas 350 e 415 metros. A sul do Vale da Quebrada é a cintura dos cabeços que envolvem a ampla e ligeira depressão atrás descrita com cota acima dos 400 metros que apresenta o maior potencial. Em ambas as zonas referidas a quantidade de água pluvial infiltrada será tanto maior quanto menor for a espessura do solo. Aqui a rocha à superfície, nua e fraturada em bancadas pouco inclinadas, constitui a superfície de infiltração por excelência. Enquadram-se nesta situação as superfícies aplanadas, em socalcos ou com amontoados de blocos nas explorações industriais de pedra. Nas áreas com coberto vegetal o sistema radicular das plantas cria caminhos para a passagem da água no solo. Nas zonas de maior declive a cobertura vegetal reduz a velocidade de escoamento superficial contribuindo para aumentar o volume da água infiltrada. Por toda a parte ocidental do Planalto e em zonas com algum declive e cobertas por solos com siliciclastos foram observados locais por onde a água se some ao fim de poucos metros de escorrência superficial (precipitações momentâneas mais intensas).

 

A Falha de Reguengo do Fetal tem funcionado, nas imediações da povoação e numa extensão mais vasta para sul como falha barreira. Estamos em presença de uma falha normal que apresenta a teto uma composição litológica bastante carsificavel: calcários oolíticos de Reguengo do Fetal (J2RF) que se sobrepõem a calcários micríticos de Serra de Aire (J3SA). Pelo contrário a muro afloram as camadas de Alcobaça (J2AL) com composições maioritariamente de calcários margosos e portanto bastante impermeáveis. A estas camadas sobrepõe-se o pequeno retalho Cretácico, já descrito, que devido á erosão superficial apresenta um relevo praticamente individualizado sendo atualmente a sua área de contacto com a falha pouco significativa (eventualmente bastante mais importante logo após a sua fase de deposição). As falhas de desligamento e as inúmeras descontinuidades associadas observadas nos calcários do Batoniano ao longo da vertente a teto da falha normal tornaram-se importantes locais de infiltrações rápidas. A capacidade de dissolução das águas infiltradas é bastante elevada e o fácil acesso à zona de escorrência vadosa possibilita o alargamento das descontinuidades verticais mais profundas. Os espaços ligeiramente alargados pela ação da água estão sujeitos à acumulação de sedimentos, mais perto da superfície ou arrastados em profundidade. Ocorrem preenchimentos totais como observado no que designámos por lápias de agulha, ou parciais (em zonas mais declivosas) por acumulação de detritos sobre clastos depositados nas partes mais estreitas. Num padrão de fracturação estreita, paralela, mais ou menos generalizado, e com acumulação de detritos, é potenciada a alguma profundidade a importância das juntas de estratificação na condução da água e organização da rede de condutas para níveis inferiores. O gotejamento intenso na Pia da Ovelha, próximo dos 290 metros de altitude poderá resultar de uma organização de escorrências, a nível mais elevado, como a descrita.

  

Figura nº 4.3 - Aspetos de condutas fósseis subverticais e verticais ao longo de descontinuidade

de maior importância. ( Fotos: Fernando Pires)

 

A infiltração rápida para zonas mais profundas é favorecida pela abertura de cada descontinuidade (distância entre os bordos), mesmo que ligeira, pelo curto espaçamento entre elas e pela sua orientação paralela. No interior, para além dos preenchimentos já referidos, dependerá da rugosidade e verticalidade das paredes e da profundidade do seu desenvolvimento.

Nesta zona, quer a norte quer a sul do Vale do Malhadouro as camadas tem a orientação N-S e uma inclinação de 10º para E. Esta atitude potencia a atuação das infiltrações mais substanciais, ao longo das fraturas e sobretudo sobre as juntas de estratificação intersetadas por elas nas suas zonas terminais. As juntas de estratificação (inicialmente de condutividade hidráulica reduzida) foram-se tornando, ao longo destes locais de mudança de direção das escorrências, progressivamente mais débeis (com espaços) potenciando a organização das condutas preferencialmente para zonas mais interiores do rebordo do Planalto e sensivelmente paralelas. A junção dos fluxos destas pequenas condutas juntamente com a pressão exercida pelas águas acumuladas em altura, nestes espaços muito confinados, vão preencher e atuar também sobre as várias descontinuidades existentes em estratos de calcários ligeiramente mais porosos ou mais fraturados.

 

Figura Nº 4.4 -– Aparente escorrência para o exterior na estreita conduta aberta em junta de estratificação

forte (fina) associada a fenda vertical/subvertical. Situação semelhante mas no interior de cavidade.

(Fotos: Fernando Pires e Raul Pedro)

Nas situações em que estes fluxos sejam mais importantes e frequentes estão criadas as condições para o alargamento progressivo dos ocos subterrâneos criando-se condutas estreitas (tipo cano do esgoto). Este tipo de evolução descrito reporta-se a um tempo geológico em que os níveis da água no exterior seriam mais altos do que os atuais provavelmente porque a fase final da elevação do maciço não teria ainda ocorrido.


Figura Nº 4.5 –- A “passagem do lançamento” é uma das mais importantes condutas na gruta do Buraco Roto podendo mesmo ter sido parte da conduta principal numa fase mais antiga da evolução da cavidade. A espessura do estrato em que se desenvolve é inferior a meio metro. As juntas de estratificação superior e inferior são fortes mas a pequena descontinuidade ao longo do teto possibilitou o desenvolvimento da conduta. Atualmente a conduta é semi-activa e a sua cota é de -10 metros (teto da gateira) em relação à cota de drenagem na entrada da gruta.

 

A inclinação dos estratos tem grande influência na estrutura de uma gruta. Na zona vadosa onde o fluxo está diretamente condicionado pela gravidade, as condutas tendem a seguir a inclinação dos estratos.

 

Na zona freática, onde o fluxo está condicionado pelo gradiente hidráulico, as condutas seguem frequentemente a direção dos estratos.

No contexto litológico, morfoestrutural e climático descrito e particularmente em função das alterações tectónicas locais a evolução, quer da zona da envolvente na entrada da gruta, quer da parte terminal do Vale do Malhadouro, ao longo da história geológica da região, assumem uma importância relevante.

 

No que respeita ao Buraco Roto e segundo informação recolhida localmente as primeiras águas apareciam antigamente na areia depositada na base dos blocos que obstruíam a galeria à esquerda da entrada. Só mais tarde escorriam do pequeno buraco a cerca de 4m de altura no topo da entrada atual. Nos anos 80 foram feitas escavações arqueológicas neste local revelando vestígios da idade do Bronze fazendo recuar para essa altura as prováveis primeiras intervenções humanas neste local.

 

Note-se que à direita da entrada da cavidade se observa uma passagem, de grande dimensão, escavada na encosta e transversal à direção inicial da gruta fazendo supor o contacto com um amplo tampão de rochas. Este seria posteriormente exumado ou poderia ser o prolongamento em altitude dos calcários fraturados no bordo da falha de Reguengo do Fetal, entre os primeiros ressaltos da cascata e as imediações da entrada atual, numa antiga fase da sua evolução tectónica, ou as duas hipóteses conjugadas. Mesmo considerando esta possibilidade era muito provável que a cavidade transversal se desenvolvesse ao longo de uma descontinuidade quase paralela ao espelho de falha e a curta distância para o interior. A galeria que se desenvolve para NNE à entrada do Buraco Roto seria o seu prolongamento.

Na nascente da Loureira a água aparecia sempre mais tarde.

 

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